Carl G. Jung – Biografia
Carl G. Jung – Biografia
"A vida sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma; a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura um só verão, depois fenece… Aparição efêmera."
Carl G. Jung, em “Memórias, Sonhos, Reflexões”
Carl Jung: um homem à procura de seu mito
Quando Carl Gustav Jung aceitou publicar sua autobiografia – ou o mito de sua vida, como ele coloca– optou por um texto não convencional, diferente daqueles repletos de fatos e realizações típicas da “jornada do herói”. Intuitivo e introvertido, o psiquiatra suíço contou sua história pela perspectiva de seu mundo interior, pois somente por meio de ocorrências interiores é que ele se compreendia. Neste espaço, porém, só podemos nos ocupar da parte visível de sua trajetória que, ainda que tenha durado, em suas palavras, “um só verão”, resultou em importante legado à história da humanidade e à evolução da consciência coletiva.
O menino Carl Gustav Jung nasceu em Kesswil, na Suíça, às margens do lago Constança, em 26 de julho de 1875. Foi batizado com o mesmo nome de seu avô paterno, um bem-sucedido cirurgião-professor. Naquela pequena localidade agrária, hoje residem cerca de mil pessoas que, na maioria, falam alemão.
Jung nasceu como o quarto filho – mas o primeiro sobrevivente – de uma família imersa na tradição religiosa. Seu pai, Johann Paul Achilles Jung, era pastor protestante e conservador em sua visão de mundo. Sua mãe, Emilie Preiswerk, era filha de pastor, mas se mostrava aberta a outras vivências espirituais. Frequentemente deprimida e ausente, tinha saúde frágil.
Em “Memórias, Sonhos, Reflexões” (1961), Jung relata sonhos e fantasias de uma criança solitária, que gostava da companhia dos próprios pensamentos, bem como da dos livros da biblioteca de seu pai, que versavam principalmente sobre teologia, filosofia e literatura.
Como sua mãe, não gozava de boa saúde e, aos 12 anos, passou a ter desmaios. Os episódios começaram quando um colega de escola o empurrou e ele perdeu a consciência. Como continuassem, a suspeita levantada era de que tinha epilepsia, mas o fato é que desfalecia sempre que tinha de ir à escola ou fazer o dever de casa. Tratava-se de uma nova escola, em uma nova cidade (Bale), e os novos colegas não o aceitavam, nem ele parecia disposto a enquadrar-se nos padrões esperados para a idade e a época. Era considerado sensível e profundo e não tinha interesse pelas aulas.
Fig.1 Kesswil,casa jung nasceu; Fig.2 Hoje, placa em sua casa ; Fig.3 Foto de família com seu pai Paul Achilles, sua irmã Johanna Gertrud e sua mãe Emilie Preiswerk, 1896; Fig.4 Jung com 6 anos
Os desmaios pareciam fazer parte de uma dinâmica neurótica com a qual aprendeu a lidar para prosseguir nos estudos e conseguir manter-se, aliviando os temores de seus pais. Nos últimos anos do século 19, decidiu ser médico e estudar na Basileia. Preocupado em manter a mãe e a irmã após a morte do pai, o jovem escolheu ser psiquiatra –em vez de cirurgião como o avô– porque exigia menos anos de estudos naquele tempo. A escolha também ia ao encontro de seu desejo de conciliar o estudo de fenômenos biológicos com espirituais.
Assim, enquanto trilhava a via acadêmica tradicional, Jung exercitou seu interesse por parapsicologia, além da psicologia. Ao doutorar-se, em 1902, apresentou a tese “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenômenos Ditos Ocultos”. Nessa época, ele já trabalhava em Zurique com Eugen Bleuler, médico-chefe do hospital psiquiátrico Burghölzli, que era reconhecido por suas pesquisas avançadas sobre a esquizofrenia, então chamada “demência precoce”. Na visão de Bleuler, o paciente esquizofrênico não poderia ser abandonado e maltratado, mas ter acesso a uma relação humana com o médico, por meio da qual a cura poderia advir.
Em Burghölzli, Jung estabeleceu o laboratório de psicopatologia experimental em 1903, onde desenvolveu o método de associação de palavras, que contribuía para compreender os sintomas e a origem inconsciente da doença. Também nesse ano, casou-se com Emma Rauschendbach, que muito o ajudou em suas pesquisas. Eles tiveram cinco filhos.
Fig.1 Eugen Bleuler,médico; Fig.2 Clínica psiquiátrica universitária de Zurique (Burghölzli) ; Fig.3 C.G.Jung casa-se com Emma Rausschendbach, 1903; Fig.4 Jung, Emma e filhos, 1918
A troca com Sigmund Freud
Em 1904, Jung passou a supervisionar o tratamento de Sabina Spielrein, uma jovem russa, histérica, paciente em Burghölzli. Esse foi um dos casos que Jung levou a Freud, por meio de uma carta de encaminhamento, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, após ela ter deixado o hospital, em 1905. Jung e Sabina continuaram a encontrar-se durante o período em que ela estudou medicina. Eventualmente, segundo se especula, os dois tiveram um relacionamento amoroso. (Em 1911, Sabina tornou-se psicanalista e, em 1942, ela foi morta pelos nazistas. Atribui-se a ela as ideias pioneiras sobre a pulsão de morte, além de outras contribuições para o avanço da psicanálise).
Em 1905, Jung tornou-se professor de psicologia e psiconeuroses na Faculdade de Medicina de Zurique (onde lecionou até 1913).
No ano seguinte, publicou “Estudos Diagnósticos de Associação” e enviou um exemplar a Sigmund Freud (1856-1939), o pai da Psicanálise, que residia na Áustria. Iniciava aí uma troca que perdurou até 1913, quando os dois romperam. Jung não concordava com Freud em seu postulado sobre a libido, pois entendia que a energia psíquica não era só sexual e que os complexos não tinham sempre origem em traumas sexuais. Além disso, eles tinham visões muito distintas sobre a espiritualidade e as religiões.
Fig.1 Freud, Sabine Spilrein e Jung; Fig.2 Toni WolffJovem e adulta
Embora Freud tivesse visto em Jung um sucessor, os dois não foram capazes de conciliar as diferenças, que ficaram evidentes, por exemplo, no livro “Símbolos da Transformação”, de 1912, fruto de um sonho que Jung teve em viagem com Freud aos Estados Unidos. Jung, que fora o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional, tornou-se então fundador da Psicologia Analítica (nome cunhado em 1913) ou Psicologia Profunda, que também foi chamada de Psicologia Complexa, em função do conceito de complexos que o próprio Jung desenvolvera em Burghölzli.
Nessa época, Jung vivia um envolvimento amoroso com Toni Wolff, a quem conhecera em 1910 como sua paciente. Mais tarde, ela se tornaria analista e parceira dele em muitas pesquisas. De acordo com a biógrafa Deirdre Bair, Emma Jung, Toni Wolff e Carl Jung conseguiram encontrar, na construção da Psicologia Analítica, uma “saída emocional segura” para essa relação triangular.
Também data da fase de crise com Freud um sentimento de incerteza que Jung relata em suas memórias. Em 1912, aos 38 anos, Jung passou em revista sua vida, dando especial atenção à infância, buscando uma causa para sua desorientação. Como isso não lhe trouxe as respostas que procurava, decidiu seguir o impulso do inconsciente e, assim, recordou-se de como, em sua infância, brincava de construtor de casas e castelos com pedras, terra e outros materiais. Sentiu-se emocionado com a presença daquele garoto criativo.
Dessa experiência, ele concluiu que, para restabelecer contato com aquela época da vida, teria de acolher a criança que fora e entregar-se novamente às brincadeiras –o que está no cerne das vivências do Sandplay – jogo de areia. Tendo vencido as “repulsões infinitas”, como ele descreve em sua autobiografia, resignou-se e abandonou-se às pequenas construções, que passaram a ser atividade diária. “Com isso, meus pensamentos se tornavam claros e conseguia apreender de modo mais preciso fantasias das quais até então tivera apenas um vago pressentimento”, explicou. “Tinha a íntima certeza de trilhar o caminho que levava ao meu mito.”
Esse era o período em que Jung encubava um futuro. “Um novo vento estava soprando”, conforme ele afirmou em uma de suas entrevistas, conforme registram McGuire e Hull. Ele decidiu, então, dar nova orientação a sua vida.
O período pós-ruptura com Freud
Quando se distanciou da comunidade psicanalítica, Jung lançou-se à investigação do próprio inconsciente, tornando-se íntimo das imagens que emergiam tanto em sonhos como em visões, mas mantendo-se enraizado na realidade externa. Essas experiências foram trabalhadas pelo analista ao longo de toda sua obra posterior e são enfocadas, em especial, no “Livro Vermelho”, ricamente ilustrado pelo próprio Jung e editado em 2009.
Nessa época solitária, que durou cerca de seis anos, o autor intuiu a existência do Self como um centro ordenador da vida psíquica, bem como o caminho teleológico da consciência em direção à totalidade, como relata Nise da Silveira, brasileira que trocou experiências com Jung e foi pioneira na aplicação das teorias dele no Brasil.
Nesse período de profunda introspecção e estudo da Gnose, Jung não deixou de produzir. Em 1914, ano em que eclodiu a Primeira Guerra Mundial, ministrou importantes conferências no Reino Unido e, em 1916, escreveu “Sete Sermões aos Mortos” e “A Função Transcendente”, livro em que explora a função psíquica responsável por fazer a ponte entre o consciente e o inconsciente.
Durante a guerra, Jung comandou o campo de internação de soldados ingleses e se dedicou a pintar mandalas que, no seu entendimento, expressavam a totalidade psíquica.
Red Book (Livro Vermelho), CG Jung escreveu: “God is in the egg”.
Na segunda metade da vida
Jung publicou sua teoria sobre os tipos psicológicos em 1920. Ele postula que o “tipo” é um aspecto unilateral da adaptação do ser humano. A introversão ou a extroversão definem tipos segundo sua atitude em relação aos objetos, ao passo que as funções psíquicas de reconhecimento e orientação no mundo são sentimento, pensamento, intuição e emoção. Algumas funções são superiores, outras inferiores. Segundo Jung, é preciso despertar aspectos que jazem no inconsciente e desenvolver funções inferiores, para que a pessoa se torne quem ela é, integral. A esse processo, o pesquisador deu o nome de individuação.
Em 1921, Jung faz, para o Norte da África, a primeira de uma série de viagens a diferentes países em busca de conhecer o homem ocidental e seus pontos de contato com mitos, ritos e cultura de povos primitivos. Nesse período, amadureceu suas ideias sobre o inconsciente coletivo e os arquétipos.
O ano de 1923 foi marcado por seu contato com Richard Wilhelm, sinólogo e teólogo com quem publicou, anos depois, “O Segredo da Flor de Ouro”, texto que evidencia pontos de tangência entre o taoísmo e a Psicologia Analítica. Foi em 1923, também, que Jung começou a construir a Torre de Bollingen, que, com os anos, deixou de ser apenas uma torre para tornar-se uma casa, morada materna, abrigo para o físico e o psíquico.
Autor prolífico, Jung prosseguia em suas pesquisas e na atividade clínica e, ao longo de sua obra, introduziu e aperfeiçoou conceitos como os de persona, sincronicidade, participação mística, sombra, “anima” e “animus” e “coniunctio”, bem como explorou as ideias de incesto psíquico, símbolo, inflação, sacrifício e desenvolvimento da consciência, entre muitas outras.
Nos anos 1930, durante uma das conferências Eranos, Jung apresentou sua visão sobre a alquimia como metáfora para o processo de individuação, no qual não se transforma chumbo em ouro, mas um homem parcial no homem total (tema apresentado de modo mais maduro em 1944, com a publicação de “Psicologia e Alquimia”). Eranos era a instância, às margens do Lago Maggiore, na Suíça, em que expoentes do pensamento ocidental (como Rudolf Otto, Mircea Eliade, Paul Tillich e Marie Louise von Franz) viviam de forma comunal e debatiam durante oito dias.
Ainda nessa década, Jung esteve no Egito, na Palestina e na Índia. Seu trabalho tornou-se mais amplamente reconhecido e o estudioso recebeu um prêmio de literatura (Suíça, 1932) e o título de “doutor honoris causa” da Harvard University (Estados Unidos, 1936). Em 1934, assumiu a presidência da Sociedade Médica Geral para Psicoterapia, na Alemanha, e, quatro anos depois, tornou-se membro da Real Sociedade de Medicina, da Inglaterra.
Apesar de considerar o nacional socialismo patológico, Jung foi acusado de nazista por assumir a presidência da sociedade de psicoterapia sediada em Berlim. Em 1940, a publicação de “Psicologia Religião”, seguida de sua proibição e queima na Alemanha, ajudou a desfazer esse equívoco. Jung também foi acusado de antissemita, o que era injusto, dada a importância que tinham para ele seus colegas e discípulos judeus. Essa acusação talvez ainda remontasse às diferenças com Freud, que tinha raízes semitas.
Últimos anos
Em 1948, quando Jung contava 73 anos, foi criado o Instituto C.G. Jung de Zurique. No ano seguinte, sua filha o apresenta a Dora Kalff, que se torna analisanda de Emma Jung e, mais tarde, incentivada por Jung, torna-se analista junguiana e cria o Sandplay – jogo de areia.
Na década de 1950, trabalhos de relevo como “Aion” (1951), “Sincronicidade” (1952), “Resposta a Jó” (1952) e “Mysterium Conjunctionis” (1956) foram lançados.
Emma, sua esposa, morreu em 1955, ano em que ele foi capa da revista norte-americana “Time” sob a chamada que, em tradução nossa, era: “Explorando a alma – um desafio para Sigmund Freud” (Freud havia falecido fazia mais de 15 anos).
Dois anos depois, “Memórias, Sonhos, Reflexões” começa a ser redigido, com o apoio de Aniela Jaffé, analista junguiana e assistente de Jung. Data de 1957, também, a famosa entrevista que concedeu à rede BBC de televisão, do Reino Unido.
Fig.1 Emma e Jung ; Fig.2 Emma e Jung com 50 anos, 1925; Fig.3 Bodas de Ouro de Emma e Jung, 1953; Fig.4 Emma e Jung curtindo Bollingen
Em 1961, aos 85 anos, escreve um ensaio para “O Homem e Seus Símbolos”. Dez dias depois, em 6 de junho, aquele que considerava sua vida “a história de um inconsciente que se realizou” morre tranquilo, em decorrência de problemas cardíacos e circulatórios.
Em seu obituário no “New York Times”, lê-se que era “um dos grandes homens da Modernidade, que buscou ampliar as fronteiras obscuras da mente humana”. Talvez o efêmero “verão” de Carl G. Jung não tenha sido tão breve assim, pois seu pensamento permanece vivo e fecundo.
Fontes utilizadas nesta pesquisa:
BAIR, Deirdre. “Jung: uma biografia”. Tradução de Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006. (vol. 1).
JUNG, Carl G. “Memórias, Sonhos, Reflexões”. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Mc GUIRE, William e HULL, R.F.C. “C.G. Jung: entrevistas e encontros”. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1982.
SILVEIRA, Nise. “Jung: vida e obra”. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
THE ASSOCIATED PRESS. “Dr. Carl G. Jung Is Dead at 85; Pioneer in Analytic Psychology”. The New York Times, 7 jun. 1961. Disponível online em . Acesso em 10 de abril de 2014.