Resenha publicada nos Cadernos Junguianos / Associação Junguiana do Brasil v.4, nº 4, página 125, agosto 2008. São Paulo: AJB, 2008.
“Juno” conta uma estória muito comum nos dias de hoje – a gravidez indesejada de uma adolescente inteligente, escancaradamente honesta e nem um pouco preocupada com o que os outros pensam dela. Descobre que está grávida após um único encontro sexual com seu melhor amigo, Paulie, e passado o susto inicial assume uma postura pragmática diante da situação, com a “equivocada” segurança e maturidade de uma garota de 16 anos, cujo telefone tem a forma de um Hambúrguer.
Paulie é tão imaturo quanto Juno. Ao receber a notícia da gravidez dá a impressão de não entender como isto aconteceu. Entre a surpresa e o espanto diz que “ela está grávida assim como a mãe e as professoras ficam” – como se tal possibilidade não o incluísse. Juno toma todas as decisões sobre um possível aborto sem envolver Paulie, mas como não consegue levar adiante seu plano decide ter o bebê e entregá-lo a um casal para adoção.
O filme aborda as crises da adolescência, a imaturidade diante de situações complexas, os papéis parentais, o conflito da gravidez indesejada em relação aos projetos individuais próprios da idade, e a falta de prontidão psíquica do adolescente para enfrentar tais situações. É um filme sutil e delicado, faz uma crítica à superficialidade das relações – sem julgamento moral – quebrando os tabus do politicamente correto.
Ao contrário do que se supõe, o filme deixa uma sensação agradável e a boa mensagem de que, apesar das dificuldades, limitações e sofrimento presentes no processo de amadurecimento de Juno e sua família, o resultado
é uma transformação positiva.
O nome da garota não foi escolhido ao acaso. O pai “tinha uma estranha obsessão por Mitologia, e decidiu dar-lhe o nome da esposa de Zeus”. Mas Juno esclarece: “Zeus tinha toneladas de esposas, mas tenho certeza que
Juno foi sua única esposa!”.
Para a psicologia analítica “os mitos são revelações originárias da alma préconsciente, pronunciamentos involuntários acerca do acontecimento anímico” (Jung, 2000, CW 9/1, §261), portanto devemos tratar os motivos mitológicos como afirmações da psique sobre si mesma, que possuem um significado vital. Jung é categórico: não inventamos mitos, mas os vivenciamos! O mito é um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, e uma das formas pela qual o inconsciente se manifesta, reativando alguns elementos da essência arquetípica do ser, criando “como se fosse” uma urgência para atender a um chamado da alma.
Filha de Chronos e Rhéa, irmã e esposa de Zeus, Juno/Hera é a grande divindade feminina do céu, do qual Zeus é o grande deus masculino. Seus atributos são equivalentes. O casamento de Zeus e Hera é denominado Hierogamia, um casamento sagrado entre intelecto e alma, capaz de produzir o conjunto das realidades, inclusive os deuses. Hera foi exemplarmente casta e fiel a Zeus, sendo venerada como o símbolo da fidelidade conjugal. Este atributo moral tornou Hera a protetora das mulheres casadas e igualmente protetora dos partos e dos recém-nascidos.
O filme inicia com Juno comprando o seu terceiro teste de gravidez no mesmo dia. Impossível continuar negando a realidade, diante de três resultados positivos. Sem conseguir parar e refletir, Juno decide pelo aborto.
Mas em frente à clínica encontra uma colega de colégio fazendo uma manifestação contrária ao aborto, que grita repetidamente: “Todos os bebês querem nascer!”. Como última tentativa para demovê-la de sua decisão, conta que seu bebê já tinha unhas. “Unhas!”. Esta informação a deixa tão perturbada quanto à indiferença, a frieza e o descuido da recepcionista da clínica diante da situação. Juno então desiste e toma nova decisão: “eu vou ter este bebê e dá-lo a um casal que realmente o deseje”. Vai em busca de bons pais para seu filho em anúncios de um jornal, “na coluna de classificados, junto com peixes exóticos” diz ela. Mas, baseia sua escolha em uma bela foto de Mark e Vanessa Loring, estampada no jornal.
Neste momento é como se Juno vivenciasse o mito, pois apesar da facilidade do aborto numa cidade onde ele é legalizado, sua reação diante da possibilidade concreta de interromper a gravidez foi como se ela recebesse um chamado de sua essência arquetípica, reativando um elemento estrutural coletivo, que a impulsiona a proteger e preservar a vida da criança, bem como possibilitar a realização do sonho de maternidade de uma outra mulher.
Desta forma Juno vai ao encontro de sua verdade interna, dando sentido à sua existência.
Ao contar que está grávida ao pai e à madrasta, Juno apresenta imediatamente a solução do problema – “Eu estou grávida, vou dar a criança para adoção e já encontrei o casal perfeito, eles pagarão as despesas médicas e tudo mais. E em 30 semanas isso tudo terá terminado e nós não lembraremos mais disso!”. Ambos dão a impressão de se sentirem aliviados por tudo já estar resolvido. Juno reage de uma forma típica da adolescência, buscando novas formas de pensar e agir, traçando o seu próprio caminho. Sente-se capaz de resolver qualquer problema e enfrentar toda e qualquer adversidade: a jornada do herói em busca da própria identidade. O pai aceita a posição em que ela o
coloca não se envolvendo profundamente com a situação e assumindo sua falta de preparo para este momento.
Da mesma forma que o pai, os modelos de figura materna com os quais ela se relaciona são um fracasso: não se dá com a madrasta e separou-se da mãe aos 5 anos de idade. Nunca se sentiu cuidada como “filha” na infância, e apesar da pseudo-segurança, ainda não aprendeu a cuidar de si mesma na adolescência. Está sozinha em suas decisões, não há espaço emocional para elaborar o confronto do próprio abandono materno e o abandono do filho que vai nascer. Como se vivenciasse o arquétipo do Herói na sua característica inflada e onipotente, tem certeza que escolheu o “casal perfeito” para garantir ao filho a defesa contra o desamparo.
As adversidades que enfrenta são muitas: a discriminação na escola, o antagonismo da mãe de Paulie, os medos não compartilhados, a transformação do corpo, a exclusão pelos amigos e a solidão – é o sofrimento do herói.
Juno se desespera ao saber que o “casal perfeito” – Vanessa e Mark – é aparentemente estável, e que há um descompasso importante com relação à adoção. Ao contrário de Mark, Vanessa está pronta para este papel. Mark
sente-se acuado no casamento, e fala como se fosse um filho: “Vanessa me deu meu próprio quarto, para todas as minhas coisas!” Com a aproximação de Juno percebe sua identificação com alguém mais jovem, que se interessa
por seus sonhos não realizados, que hoje estão encolhidos e apertados naquele quarto. Para resgatar sua própria identidade, desiste da adoção e termina o casamento. Apesar disso, Juno mantém a decisão da adoção legal
e entrega a criança a Vanessa, mesmo diante de uma nova frustração: o “casal perfeito” nunca existiu.
A garota compartilha com o pai suas angústias diante das relações amorosas; “Eu preciso saber se é possível para duas pessoas viverem juntas e felizes para sempre, ou ao menos por alguns anos?” É sua oportunidade para re-significar as figuras parentais: o pai consegue acolher seus medos e insegurança, compartilhando experiências de vida e exercendo adequadamente seu papel; e a madrasta, através do envolvimento profundo com os cuidados pré-natais, oferece outra configuração da figura materna.
A sucessão de estações do ano marca o ritmo do desenvolvimento psicológico desses personagens, simbolizando a alternância cíclica e os eternos reinícios. No inicio é o Verão, com a alegria, diversão e inconseqüências, para no Outono, com as folhas amarelecidas surgirem os questionamentos, a constatação de sentimentos nunca admitidos, e a descoberta do amor. Com a introspecção do Inverno surge a constatação das idealizações, o contato com as perdas da gravidez precoce, o luto – o bebê nasce e Vanessa está amedrontada como toda mãe com seu primeiro filho. O ciclo se fecha com a chegada da Primavera, trazendo à tona a inquietação em relação ao futuro: a mãe que ela quer ser um dia…
É um novo começo para todos, pois Juno e sua família já não são os
mesmos.
(Filme Juno, direção de Jason Reitman, roteiro de Diablo Cody, EUA, 2007.)
Edna G. Levy é Psicóloga, analista Junguiana, membro da International
Association for Analytical Psychology-IAAP, membro da Associação
Junguiana do Brasil-AJB e membro do Instituto Junguiano de São PauloIJUSP.