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Falando de coração para coração

A criança portadora de doença cardíaca congênita e o adoecer as emoções e dos sentimentos de sua família.
Edna G. Levy

O coração está associado à vida e à morte. É o primeiro órgão do corpo humano a iniciar sua formação, na 3a semana de gestação, e a alcançar um maior desenvolvimento na 4º ou 5º semana, batendo em ritmo regular e compassado, sendo também o último órgão a parar de funcionar, simbolizando o fim de uma existência.

Há milênios o simbolismo do coração assume as mais diversas formas: símbolo do amor profundo e verdadeiro, das emoções que não obedecem à razão: “Amar de todo o coração”; na definição de caráter e índole: “Puro de coração”; ter coragem e ânimo: “Não lhe falta coração para a luta”; do centro, a parte mais importante de um lugar: “O coração da cidade”. Desde muito pequeninos entendemos perfeitamente quando ouvimos de nossos pais: “você mora no meu coração” e, sem precisarmos de maiores explicações, sentimo-nos plenamente amados, tranqüilos e seguros.

Assim, criou-se uma mística em torno do coração, considerado uma fonte de vida e a suposta sede da sensibilidade moral e afetiva. Diante de tamanha importância atribuída a este órgão, pode-se imaginar como essa carga simbólica interfere no equilíbrio emocional de uma família, ao saber que seu filho/a nasceu com uma malformação no coração. Poucas doenças são tão assustadoras quanto as cardíacas, pois são sentidas como ameaça à vida, gerando ansiedade e angústia.

O coração é, de fato, o centro vital do ser humano, atua como uma máquina pulsante, bombeando o sangue oxigenado, que é o fluido da vida, para todos os órgãos do corpo humano.

De acordo com artigo “Cardiopatia congênita no recém-nascido”, de Rivera, I.R., e outros, publicado no Arquivo Brasileiro de Cardiologia, Vol.89, nº 1, Julho de 2007, no Brasil, treze (13) em cada mil (1000) crianças nascem com alguma malformação anatômica e funcional no coração.

Apesar do impacto destes dados, não podemos deixar passar despercebido que 80% das cardiopatias congênitas permitem que a criança tenha uma sobrevida, dando condições para que ela receba o tratamento, que envolve: o acompanhamento clínico constante, técnicas de exames invasivos – como, por exemplo, o cateterismo – e faça as cirurgias corretivas necessárias, já na primeira infância. Como as malformações anatômicas são originárias na gestação, o diagnóstico geralmente é dado logo após o nascimento ou até o primeiro ano de vida, dando oportunidade ao paciente de ter um bom prognóstico e poder desfrutar de vida normal.

Há dois momentos de grande impacto emocional para os pais de crianças portadoras de deficiências cardíacas: o diagnóstico da cardiopatia e o momento da indicação cirúrgica.

Para a família, a descoberta da cardiopatia desencadeia um turbilhão emocional que envolve a aceitação do filho doente, da doença e o medo do futuro desconhecido. A família passa a viver sob estresse constante. Apesar
de extremamente difícil e sofrido, é preciso confrontar a frustração de ter um filho “com defeito” e elaborar a perda do “filho perfeito”, esperado por todos os pais. Somente então será possível criar um vínculo genuíno com o filho real.

A partir da indicação de cirurgia deste “órgão sagrado”, a Orientação para Pais é de valor fundamental, pois a preparação psicológica para lidar com os sentimentos que virão à tona diante da cirurgia iminente pode ajudá-los
sobremaneira. O medo do filho/a “não acordar” da anestesia, a dor que pode ser insuportável, o isolamento na UTI, e, principalmente, a necessidade de se elaborar a angústia de morte associada à cardiopatia e aos riscos da cirurgia em si, assim como o sentimento de impotência frente a essa situação, são os sentimentos esperados neste momento, em que os pais precisam encarar a cirurgia com segurança, para que tenham condições de transmiti-la ao filho/a.

A importância da Orientação para os Pais de crianças cardiopatas está na necessidade de seu ajustamento psicológico em relação à criança e frente a essa doença tão assustadora. A falta de uma explicação racional para a
malformação anatômica do coração favorece o surgimento de fantasias de culpa e responsabilidade em relação ao problema cardíaco do/a filho/a: imaginam-se causas de ordem emocional para a doença, tais como um castigo pelo fato de aquela gravidez não ser desejada, desentendimentos mais sérios entre o casal, ou certas atitudes por este tomadas, que o fazem supor não ser merecedor de ter um/a filho/a saudável, entre outras.

Inconscientemente, pode haver um sentimento de rejeição ao “filho defeituoso”, com um conseqüente terrível sentimento de culpa. Na tentativa de sua reparação, os pais passam a ter uma atitude de exagerada proteção à criança. Percebem seu filho como um indivíduo inferiorizado, que nunca poderá fazer as mesmas coisas que as “pessoas normais”, como praticar esportes, casar ou ter filhos. A extrema permissividade, a falta de limites e o
tratamento diferenciado, privilegiando suas necessidades e desejos em detrimento daqueles dos outros filhos, são intervenções prejudiciais à formação de sua personalidade, pois desta forma acabam limitando seu crescimento emocional e incentivando sua dependência. Quando se estabelece este tipo de dinâmica familiar, todos os membros são por ela negativamente afetados.

O grau de comprometimento funcional do coração determinará o quanto a criança virá a ser prejudicada no seu cotidiano, nas atividades físicas e de lazer e, conseqüentemente, o quanto será afetada na formação de sua
identidade e em seu ajuste ao meio em que vive.

Essas crianças poderão apresentar imaturidade emocional ao longo da vida, em virtude das limitações sofridas durante o tratamento. Sofrem geralmente de baixa auto-estima, causada pelo sentimento de inferioridade decorrente
da doença, têm dificuldade de alcançar autonomia e tolerar frustrações e fracassos, muitas vezes atribuindo à doença fracassos ocasionados por outros fatores, desta forma obtendo ganhos secundários através da cardiopatia. Oprimidas pela doença, por vezes não se interessam pelo próximo e apresentam dificuldade de socialização, assumindo
comportamento egocêntrico.

As dificuldades no relacionamento interpessoal são causados por excessiva timidez, falta de segurança em si e nos outros, sentimento de humilhação e antecipação de uma hipotética rejeição afetiva, em função da cardiopatia.

Muitas vezes, com medo de serem descobertas como cardiopatas, acabam se isolando, restringindo seus contatos ao círculo doméstico e esquivando-se de eventos sociais, fatores que desencadeiam grande ansiedade.

Porém, estas seqüelas psicológicas podem ser bem menores se a família puder proporcionar um ambiente saudável à criança, aceitando-a como ela é, encorajando-a também a se aceitar e a fazer uso de suas habilidades e potencialidades, para que, dentro das limitações que suas condições de saúde impõem, vá assumindo responsabilidades, desta forma estruturando e fortalecendo sua personalidade, o que lhe permitirá uma melhor adaptação ao mundo exterior.

Após a cirurgia, faz-se necessário ajustar psicologicamente o paciente e sua família à sua nova condição física, favorecendo o amadurecimento emocional, preparando a criança para tornar-se produtiva e auxiliando-a a encontrar tarefas compatíveis com sua capacidade física. Neste momento, é natural que surjam dúvidas e insegurança referentes à recuperação da convalescente e a sua capacidade de enfrentar qualquer situação… Faz-se então necessária uma readaptação a sua nova auto-imagem, a uma imagem corporal total ou parcialmente restaurada, para que possa usufruir dos resultados da cirurgia.

A técnica do Jogo de Areia é extremamente útil e eficiente no acompanhamento de crianças cardiopatas e na orientação de seus familiares pois, por sua natureza “livre e protegida”, permite ao paciente retornar a condições psíquicas primárias, em que se inicia o crescimento e o desenvolvimento. Como continente seguro, o método cria condições que facilitam a maturação segura de conteúdos psíquicos reordenados por meio de todas as fases do curso de desenvolvimento da psique.

As atividades e movimentos das imagens simbólicas na caixa de areia permitem ao paciente recapturar e retomar o caminho do crescimento psíquico, desde seu início na unidade mãe-criança.

Por ser uma técnica não-verbal, incita uma regressão a fases do desenvolvimento anteriores à palavra, facilitando o processo terapêutico, trazendo à tona conteúdos inconscientes e ativando os processos de elaboração dos conflitos e complexos.

O Jogo de Areia funciona como uma ponte entre o mundo interno e o mundo externo, desta forma possibilitando a cura. A caixa de areia é o espaço intermediário entre essas duas realidades, interna e externa, acolhendo os sentimentos, emoções, medos, inseguranças e experiências de vida – real ou psíquica – ali representados por meio das miniaturas e do cenário. O sintoma cardíaco, antes expressado no corpo físico, passa a ser expressado na caixa
de areia, como um corpo físico simbólico, encontrando desta forma uma via “higiênica”, útil e benéfica para expressar-se.

Assim, o Jogo de Areia é uma técnica transformadora, pois remove todos os obstáculos do ambiente para um desenvolvimento psíquico saudável, ordenado e sólido.

Edna G. Levy é Psicóloga, analista Junguiana, membro da International
Association for Analytical Psychology-IAAP, membro da Associação Junguiana do
Brasil-AJB e membro do Instituto Junguiano de São Paulo- IJUSP.