Os símbolos dos processos alquímicos e o Sandplay

A origem histórica e mitológica da Alquimia.

 

A alquimia, um conjunto de práticas experimentais baseadas nos conhecimentos adquiridos na área da química durante a Idade Média e o Renascimento, visava à descoberta da pedra filosofal, a fórmula secreta para transmutar metais comuns em ouro, e da panacéia, o remédio universal.

A palavra é formada por “chB mia”, arte egípcia – a química – tal como praticada em Alexandria, na época helenística, acrescida do nome dado ao Egito, “Khmi” – “Terra Negra”— nos textos em hieróglifos.  Sua origem também é associada à palavra grega “chymeía”, derivada de “cheîn”,  que significa derramar e infundir,  e de “chymós”, que significa sumo, seiva.

As técnicas utilizadas na alquimia ocidental tinham suas raízes nas técnicas egípcias de embalsamamento, tingimento, ourivesaria e cosmetologia.

Segundo Von Franz (1993), o surgimento da alquimia pode igualmente ser atribuído à deusa egípcia Ísis, visto que ela detinha o conhecimento do uso da prata e buscava o conhecimento do mistério do ouro. O Deus Hermes – aquele que desvenda – aparece inúmeras vezes nas imagens alquímicas, com seu correspondente feminino Ísis, o que explica o surgimento da relação Hermes-Ísis na origem da alquimia.

Na mitologia grega, Hermes era considerado um benfeitor e defensor da humanidade perante os deuses do Olimpo, ele fazia a conexão entre estes dois mundos. Seu nome origina-se da palavra “herma”, que designava os montes de pedras usados para indicar os caminhos. (Brandão,1988 e Hamilton, 1983).

A origem mitológica da alquimia é atribuída ao deus egípcio do conhecimento, da palavra e da magia, Thoth, o qual no  intercâmbio com a civilização grega, foi associado a Hermes,  desse sincretismo resultando a denominação de Hermes egípcio ou Hermes Trimegistos, que significa três vezes grande. (Fowden,1993).

Entre o século III a.C. e o século III d.C. desenvolveu-se a “literatura hermética”, relacionada a  HermesTrimegistos, que versava sobre ciências ocultas, astrologia e alquimia.  A expressão simbólica da alquimia passou então a apresentar um novo ponto de vista, além dos já conhecidos (literal, alegórico e o aspargírico), o Hermético, constituído por um conjunto próprio de alegorias, no sentido “Espiritual”, onde as imagens  ou o texto exprimem o estado da alma e a busca do alquimista.  A partir desse momento surgiu um novo ponto de vista, fazendo a conexão entre o microcosmo e o macrocosmo, baseado na ligação íntima entre  o visível e o invisível.

Os elementos históricos que contribuíram para a formação da alquimia foram

  1. As concepções egípcias religiosas, influenciadas pela cultura grega, assim como sinais de simbolismos judaico e gnóstico;
  2. As receitas que restaram de antigas tradições profissionais secretas, como os artesãos e ferreiros;
  3. A filosofia natural grega, cujo foco de reflexão filosófica era o mundo natural, em sua busca pelo princípio das coisas.

Enfim, os gregos entraram em contato com as ciências secretas egípcias, que se compunham de uma antiga tradição artesanal aliada à prática sobre o comportamento da matéria. Eles sabiam como fabricar o esmalte, a tinta invisível e ligas metálicas. A conjuntura destes dois universos – grego e egípcio – foi extremamente produtivo para ambos, pois a tradição de receitas e pensamento religioso egípcio incorporou o pensamento cientifico grego já tão desenvolvido e vice-versa.

Von Franz afirma que esse foi o “momento do nascimento da alquimia, quando os modelos de  pensamento da filosofia grega convergiram com as  práticas experimental das tradições egípcias”. Von Franz (1993), pág.65.

Sintetizando, sob o ponto de vista mitológico, a Alquimia  traz como atributos: comunicar, insinuar e revelar os elementos vitais; sinalizar e guiar a viagem entre o mundo visível e o invisível e finalmente transformar. Todos esses atributos citados tornam-se evidentes ao se observar as imagens do Sandplay.

  1. O Encontro de Jung com a Alquimia.

Jung redescobriu a Alquimia por volta de 1920, ao perceber a semelhança entre esta e o material produzido em sonhos por seus pacientes, passando a estudá-la em segredo.  Observou que “as experiências dos alquimistas eram, num certo sentido as minhas próprias experiências, e o mundo deles era num certo sentido, o meu”. (Jung,1975, p.181).

Jung conclui que podemos fazer grandes descobertas, quando temos a humildade e paciência necessária para trabalhar com materiais contraditórios, obscuros e paradoxais, exatamente como se manifestam os materiais simbólicos dos sonhos e da alquimia.  Jung viveu isso na própria pele!  O período de 1913 a 1917 foi para ele muito intenso e sofrido, pois após sua ruptura com Freud vivenciou um confronto com o inconsciente, tal qual uma metamorfose alquímica, que tornou possível o surgimento de uma nova consciência.

Dedicou à alquimia aproximadamente 35 anos de pesquisa, sendo um quarto dos textos que escreveu relativos a temas alquímicos.  Em sua autobiografia, Jung reconheceu que a alquimia forneceu o verdadeiro fundamento para a psicologia analítica, sendo essencial, inclusive, para a sua concepção da estrutura da personalidade, como se fosse uma psicologia pré-científica da personalidade.

Jung começou a interessar-se por este tema em 1909, quando, estudando mitologia e os gnósticos, percebeu a presença de alguns elementos alquímicos. Chamou-lhe a atenção o deus “Cratera”, da tradição gnóstica, que representa um recipiente para as misturas e é preenchido pelo espírito, sendo enviado à terra para batizar aqueles que desejam uma consciência maior. Simboliza um rito de passagem, o útero para o renascimento espiritual. E para nós, terapeutas de Sandplay, podemos associar o símbolo do deus cratera à caixa de areia.

Jung observou que, dentro da visão hermética alquímica, o feminino tinha uma função primordial, assim como o masculino.  Esta nova visão do princípio feminino servia de complemento à teoria patriarcal de Freud e à visão protestante e judaica vigente na época.

Jung passou a ter sonhos em que a alquimia era anunciada pelo inconsciente, muito embora ele não compreendesse seu significado.  Então, passou a pesquisar a história do mundo, das religiões e da filosofia, até que, em 1921, leu a obra “Hypnerotomachia Poliphili”, de Béroalde de Verville, publicada em 1600, o marco inicial de seus estudos.

Em 1928, recebeu o texto sobre alquimia chinesa, O Segredo da Flor de Ouro, enviado por seu autor, Richard Wilhelm, que lhe pedia um prefácio. Apesar de seu interesse por alquimia já datar de alguns anos, foi somente a partir deste momento que passou a estudá-la intensamente.

Jung levou quase dez anos para decifrar e compreender as expressões dos alquimistas, estabelecendo uma diretriz com palavras-chave e notas explicativas, para tentar aprender e compreender a linguagem falada pelos alquimistas: os símbolos.

De acordo com seu pensamento, o objetivo da obra alquímica é ser um ideal, que significa a síntese de nossa mais elevada aspiração. É um indicador do caminho a seguir.

Sendo assim, nossa obra, visando à interação da personalidade, é composta por uma série de processos internos  que acontecem dentro de uma sucessão de fases, para só assim alcançarmos as transformações de conteúdos psíquicos em conflito.  É o processo de individuação no sentido da realização parcial de nosso ser, posto que se constitui num ideal inatingível na sua excelência.

  1. A Sala do Sandplay e o Laboratório Alquímico.

Há uma grande semelhança entre o laboratório alquímico e a sala destinada ao Sandplay: ambos podem ser designados como recintos sagrados, pois requerem uma atitude espiritual conectada com  valores essenciais, superiores e elevados.

No laboratório alquímico havia o espaço para o trabalho e o espaço reservado para o oratório e biblioteca.  Etimologicamente, “Labor- “ como elemento decomposição antepositivo, do latim labor,óris, significa trabalho com esforço, sofrimento e fadiga que se experimenta na realização deste.  O alquimista trabalhava com a prima matéria, submetendo-a as metamorfoses alquímicas.  Elaborava as transformações à custa de esforço, trabalho cuidadoso e afinco.

A sala do Sandplay é também o local da “theoria”, onde se dedica a amplificação dos símbolos presentes nas imagens de cada paciente. É o espaço especificamente equipado para que muitas das transformações necessárias ao processo de individuação do paciente possam ocorrer.

Em seu centro está colocado o vaso alquímico, dentro do qual se faz a transformação do simples metal em ouro – a meta a ser alcançada.

Segundo Devine (1994), o vaso é produzido por uma somatória de elementos:

  • A caixa de areia própriamente dita;
  • A contenção do paciente e do terapeuta no contexto analítico;
  • A transformação da dor do paciente dentro das mudanças alcançadas em sua vida;
  • A visão do paciente;
  • O entendimento, interpretação e acolhimento da situação pelo terapeuta;
  • A coleção de miniaturas pode influenciar o Vaso, considerando-se a quantidade e a organização apresentada. A ausência de determinada categoria, ou um número muito reduzido de miniaturas disponíveis pode vir a ser um fator de limitação, bem como de liberdade ou amplificação se houver a diversidade necessária. A organização das miniaturas também pode influenciar o vaso, pois pode provocar a experiência da ordem quando arrumadas por categorias, ou do caos na situação oposta;

o vaso compreende todos esses ingredientes, expressados e processados na  caixa de areia e através dela.

A caixa de areia é o cadinho onde ocorrem as transformações. A prima matéria, personificada por meio das miniaturas ou das formas produzidas pelas mãos do paciente com a areia, é colocada no recipiente alquímico transformador – a caixa de areia – onde ocorrerão as operações necessárias.

  1. O Paciente, o Terapeuta e o Processo.

Uma das características da obra alquímica é a formação de um par, realizando a união dos opostos, o casamento alquímico que se perpetuará até o final da obra.  Há um par de operadores: o Sol e a Lua, o Alquimista e a Sóror Mystica, a consciência masculina e o inconsciente feminino, entre outros. Esses pares de opostos encontram-se no paciente, e durante o processo terapêutico, através do trabalho relativo às questões relativas a transferência – conteúdos inconscientes projetados no terapeuta – ocorrerá a mistura, que deverá ser separada, possibilitando a cura.

Devemos sempre nos lembrar desse duplo aspecto, pois ele representa os aspectos inferior-superior, positivo-negativo, masculino-feminino.  No contexto terapêutico, essas polaridades simbólicas se alternam tanto no terapeuta como no paciente, de forma que solvente e dissolvido sempre caminham juntos, libertando-se das singularidades da matéria e ao mesmo tempo fortalecendo o espírito. Como Jung diz,  “não se pode exercer influência se não se é susceptível a ela” (Jung, V.XVI,§163).

O paciente expressa por meio das imagens suas emoções, sentimentos, pensamentos e intuições, que se misturam na caixa formando o caos inicial, o portador de todas as possibilidades e potencialidades do vir a ser.  Mas, para que isso se realize, é preciso que esta prima matéria seja processada dentro do vaso alquímico e assim consiga  alcançar  a totalidade e a saúde.

O vaso deve estar bem fechado, para que seu conteúdo não se perca. Da mesma forma, o terapeuta do Sandplay deve zelar pelo “espaço livre e protegido”, que se caracteriza por ser o ambiente transformador e o recipiente contentor das substâncias ocultas, quer sejam de caráter verbal ou não verbal. A assistência cuidadosa do terapeuta proporciona o processo, com seu acolhimento, olhar, questionamentos e afirmações, criando condições para que o paciente experimente as etapas transformadoras que levam a alcançar a Pedra Filosofal, ou o Ouro Alquímico – metáfora do  Si-mesmo.

Podemos claramente observar os procedimentos terapêuticos do Sandplay, nos termos psicológicos traduzidos por Jung, de uma operação alquímica de Dorneus, que tinha como objetivo produzir uma substância celeste que fosse reconhecida pelo espírito como verdadeira.

A “receita”, termo usado por Jung, tem total semelhança com os princípios fundamentais da “operatio” do Sandplay:

Então a receita dará isso: tome-se o inconsciente numa das formas mais à mão, como, por exemplo, uma fantasia espontânea, um sonho, uma disposição irracional de ânimo, um afeto ou algo desse tipo, e opere-se então com isso, isto é, preste-se atenção especial a essa matéria, concentrando-se nela e observando objetivamente as modificações dela. Ninguém se aborreça de dedicar-se assiduamente a essa tarefa e de acompanhar as transformações ulteriores da fantasia espontânea com atenção e cuidado. Cuide-se antes de tudo de não permitir a entrada de nada de fora que não pertença a isso, pois a fantasia tem tudo  em si de que precisa*. Desse maneira tem-se a certeza de que de modo algum se interveio com arbitrariedade consciente, mas que sempre se deu curso livre ao inconsciente. * Nota: “tudo de que precisa” é uma expressão referente a Pedra Filosofal.

(JUNG, C.W., v. XIV/II, § 404)

No Sandplay, a fantasia e a imaginação são elementos de suma importância na criação de um cenário, pois são transformadas em energia criativa e transformadora. Os conteúdos arquetípicos são traduzidos para uma forma concreta, produzindo uma imagem particular que se encontra atrás das emoções.  Agora, essa imagem produzida será introjetada pelo paciente e o processo de transformação interna inicia seu movimento…

O caminho criativo é uma das formas eficientes de se trabalhar com o inconsciente. Quando um indivíduo elabora uma fantasia por meio do Sandplay, esta passa a ter a possibilidade de fazer parte da sua história concreta, como se uma situação real estivesse sendo elaborada. As dificuldades encontradas ao se elaborar as fantasias no Sandplay, expressam simbolicamente as dificuldades psíquicas reais. Por conseguinte, quanto maior o domínio adquirido sobre elas  nas cenas, maior a probabilidade de  vencê-las  na  psique.

Sendo quase tudo o que é construído pelo analisando  altamente simbólico, o terapeuta precisa ter condições de entender corretamente estes conteúdos. Para tal, deve estar ciente de que somente quando mantiver a consciência acordada, com toda sua capacidade crítica, através de ativa e efetiva dedicação, poderá discernir as mensagens do inconsciente.

Jung afirma que “o conceito de imaginatio é provavelmente uma das chaves mais importantes, se não a mais importante, para a compreensão da  opus” (Jung,V.XII,§396), pois representa a concretização de conteúdos do inconsciente que pertencem ao universo arquetípico e, portanto, não pertencentes ao nosso mundo observável.  Logo, o meio para a sua realização é o “reino intermediário, entre a matéria e a mente, isto é, um domínio anímico de corpus sutis, cuja característica era manifestar-se tanto sob a forma espiritual, como material” (ibid § 394).

O cenário do Sandplay é um produto desse reino intermediário entre o espírito e a matéria.  É a transposição dos conteúdos inconscientes e arquetípicos – tais como os complexos e conflitos – do mundo interno e abstrato para o mundo externo e concreto. Nesse momento, consciente e inconsciente se comunicam e o paciente experimenta sentimentos e emoções profundos, vivenciados como uma experiência verdadeiramente transformadora, como uma transformação anímica.

Como Ammann (2002) nos alerta, é possível que o terapeuta tenha que controlar o “fogo”, a energia adequada durante o processo psicoterapêutico. É preciso usar a “temperatura” correta, saber que conteúdos acolher, interpretar, ampliar, discriminar e, muitas vezes, deixar em “banho-maria” – ser sutil, esperar aquecendo suavemente para desencadear os processos necessários para que o paciente possa gradativamente tomar consciência e ativar a transformação dos conteúdos inconscientes.

A sensibilidade de perceber a “temperatura” que o paciente consegue suportar é fundamental, pois, caso contrário, corre-se o risco de estragar a obra. Assim, cabe ao terapeuta assumir a espera resignada pelo resultado e uma avaliação sensata acerca dos eventos, pois estes espelham o processo interior do analisando e não devem ser acelerados  É preciso desenvolver a capacidade de olhar através das substâncias transparentes o processo do trabalho em curso.

A atitude espiritual do alquimista em relação à obra deve ser: “jamais farás  com que os outros se tornem o UM, se antes tu mesmo não te tornares UM”, diz Dorneus em sua Philosophia meditativa”  a um alquimista (Jung, V.,XII,§ 358). Se pretendemos encontrar a Pedra Filosofal, devemos começar por um fragmento nosso.  A condição psicológica fundamental do terapeuta do Sandplay é se aproximar da personalidade unificada. Esta condição significa alcançar o equilíbrio das tensões resultantes dos pares de opostos psíquicos, “eu” e Si-mesmo, muito embora nunca se perca a sensação dessa dupla natureza.   Essa é uma circunstância essencial para a realização da obra psicoterapêutica.

A obra era considerada um trabalho sagrado, esta é mais uma semelhança com o Sandplay, no qual o trabalho deve ser orientado pelo Si-mesmo e nunca pelo “eu”, o que implica uma postura religiosa.

Etimologicamente, a palavra religião-religio deriva de religare ou religere. Santo Agostinho utilizava religare com o sentido de “ligar novamente o homem a Deus”, mas os especialistas desta área definem religere como “consideração cuidadosa e vigilante”. Embora a interpretação de Santo Agostinho não tenha o aval dos especialistas, ela faz sentido para nós psicólogos e Terapeutas do Jogo de Areia, pois é nítida a percepção da reconexão com a própria essência quando o trabalho é realizado dentro deste princípio.

E complemento, com o exercício da prática clínica responsável e ética que não renúncia ao respeito, dedicação, cuidado extremado e estudo aprofundado.

  1. Os simbolos dos Processos Alquímicos e  o Sandplay.

O método da alquimia é o “obscurum per obscurius, ignotum per ingnotius”, ou seja, o obscuro pelo mais obscuro, o desconhecido pelo mais desconhecido (Jung,V.XII§ 332).  No início havia pouca diferenciação entre a ciência e a filosofia. Os alquimistas tentavam entender os problemas da matéria e do espaço desconhecido. O que não é conhecido e ignorado é vazio e, portanto, passível de ser preenchido com projeções de quem o observa.  A principio, quem olha vê, ou pensa ver na matéria conteúdos do seu inconsciente ali projetados. O alquimista “encontra na matéria, como se pertencessem a ela, certas qualidades e significados potenciais de cuja natureza ele é inteiramente inconsciente” (ibid §332). A partir do final do século XVI, surge uma literatura rica de significado psicológico, demonstrando que os alquimistas estavam conscientes da natureza psíquica de suas transmutações alquímicas.

A obra alquímica, da mesma forma que o Sandplay, é composta por duas partes: a primeira, “operatio”, é a operação concreta; a segunda, “theoria”, o conjunto de conhecimentos teóricos, filosóficos e psicológicos que seriam utilizados para buscar o entendimento da obra, pelo método da “amplificatio”, ou seja, amplificação ilimitada.

A divisão do processo era definida pela “tetrameria da filosofia”, portanto inicialmente a obra alquímica era composta por quatro estágios:

  • Nigredo (melanosis) ou Operação Negra;
  • Albedo (leukosis) ou Operação Branca;
  • Citrinitas (Xanthosis) ou Operação Amarela – é o estágio em que se opera a transmutação dos metais. A partir do século XVI, este estágio caiu em desuso e, em seu lugar, entrou Viriditas – Operação Verde, muito embora esta operação raramente surgisse após a Nigredo.
  • Rubedo (Iosis) ou Operação Vermelha.

Havia igualmente quatro substâncias básicas, que representavam  princípios simbólicos (não eram substâncias químicas):

  1. Enxofre: representa o Pai dos metais, dá a metalicidade e é denso;
  2. Mercúrio: simboliza a Mãe dos metais, dá a combustibilidade e a cor, é volátil;
  3. Sal: exprime o espírito universal, faz a ligação e a conexão (Eros), é a integralidade.
  4. Chumbo: dá o peso. Não existe pedra filosofal sem o chumbo.

Seguindo ainda o princípio da “tetrameria”, o mundo material, composto pela “prima matéria”,  é a massa confusa – o caos, e é formado pela  quaternidade dos elementos, formando uma cruz com dois grupos de contrários:

4 elementos: Água, Fogo, Terra  e Ar;

4  qualidades: Úmido e Seco, Frio e Quente.

Jung estava em harmonia com este conceito, pois reconhecia a existência dos símbolos arquetípicos básicos e sabia que estes aparecem sempre em número de quatro. É o Quatérnio formando a Unidade. Observamos a presença e o significado do número quatro para onde quer que olhemos, inclusive e principalmente nas cenas do Sandplay.

No entanto, apesar do princípio da “tetrameria da filosofia”, o processo não conduzia à meta desejada, pois cada uma de suas partes nunca era elaborada da mesma forma até o final. Portanto, mudou-se a classificação dos estágios de quaternário para ternário, em conseqüência de razões de ordem exclusivamente interna e psicológica dos alquimistas.

A obra precisa estar sujeita a dois princípios concomitantes, no paciente, para obter-se a união dos opostos, a coniunctio:

  • Solar e masculino, simboliza o consciente e na alquimia é representado pelo enxofre e pelo alquimista;
  • Lunar, e feminino, simboliza o inconsciente e na alquimia é representado pelo mercúrio e pela Sóror.

Como já foi dito, as cores remanescentes que identificam os estágios da obra são o preto, o branco  e o vermelho, ou seja, Nigredo, Albedo, e Rubedo.

Descreverei algumas semelhanças entre os estágios, as operações alquímicas e o Sandplay, embora não seja necessário que todos estejam presentes em um processo individual. Porém, é essencial que o terapeuta conheça e reconheça cada etapa da obra alquímica, para que possa desempenhar o seu papel no processo psicoterapêutico de cada paciente seu, pois esta é a obra comum e recíproca de ambos. Assim, é fundamental que tenha amplo conhecimento dos seguintes aspectos e os leve em consideração durante o processo de análise:

  1. O estágio do trabalho alquímico;
  2. A substância psíquica em que trabalha e as condições dela;
  3. O modo de execução da obra;
  4. O estado psíquico e a condição do paciente.

Considerando-se a mudança dos estágios alquímicos para três, conforme mencionado, temos a seguinte classificação:

  • Nigredo (melanosis): é o estágio em que a prima matéria é dissolvida e putrefada pelo calor e pelo fogo, com a subsequente morte do produto da união.

Cor: negra, representa o caos.

Operações: Para entrar na fase de Nigredo e tornar uma substância preta, as operações devem ser escuras: solutio, separatio, devisio,  putrefatio, calcinatio, mortificatio. 

Modo de execução da obra: vagaroso, repetitivo, difícil, dissecador, severo, esforçado, coagulante ou pulverizante.

Paciente: Sente-se deprimido, confuso, constrangido, angustiado e sujeito a idéias pessimistas, ou até mesmo paranóicas, de doença, fracasso e morte. Rígida auto-crítica e destruição das antigas estruturas. É um estágio de muitas emoções, sofrimento, perdas e dissociação das energias. Dor psíquica. Confronto com a sombra.

Podemos observar claramente as características da Nigredo na poesia “Na Noite Terrível”, da coletânea Poemas de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. (http://www.citador.pt/index.php, acesso 14/04/09.10:27)

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incômoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver …

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida…

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

O preto, como ausência de cor, atua como uma negação da assertividade, gerando dúvida, pensamento negativo, suspeita, destruição e baixa-estima.  O preto dissolve, confunde, esconde as qualidades e virtudes. Mas, ao matar a matéria, a Nigredo torna possível a transformação psicológica. “Quando o alquimista se depara com ‘o negro mais negro que o negro’, sabe que a obra não tarda a realizar-se”. (Carvalho,1995)

Podemos observar as matérias negras nas fábulas e mitos que fazem parte do imaginário arquetípico e que pertencem ao reino do inconsciente coletivo. Nestas obras, o  negro indica a putrefação, a morte, o luto, o túmulo, o pássaro preto (melro), o corvo, as trevas, o eclipse solar, etc.

O alquimista Flamel dizia que “a matéria negra da obra é o seu chumbo (o que lhe dá peso), a chave da obra e o primeiro sinal, pois se não vier o negro não virá o branco, e será necessário recomeçar”. Pessoas que não conseguem fantasiar e imaginar podem estar presas na Nigredo. Nesse sentido, o Sandplay  reconhece o valor inestimável da fantasia criativa, pois ela é a prima matéria do nosso ofício.

  • Albedo (leukosis): é o estágio em que a substância é purificada; estado lunar ou de prata;

Cor: o branco, o amanhecer, clareamento;

Operações: Separatio, purificatio ou sublimatio,

Modo de execução da obra: Para ocorrer o embranquecimento da matéria, é preciso lavar, dividir, separar, nomear, categorizar, dissecar e diferenciar, moer, martelar, transformar em pó muito fino, quase um gás, um vapor. O trabalho é circular e repetitivo.

Paciente: Ganha uma clareza mental e emocional, em que há discriminação e ampliação da consciência. É o estágio em que o paciente se separa de suas emoções, passando a compreendê-las.  Neste estágio pode ocorrer o confronto com a contraparte sexual anima-animus.

A cor branca contém todas as cores, é a “cauda Pavonis”. A luz da Lua após as trevas, sinalizando a nova união do espírito e matéria. A vermelhidão resultante do calor crescente é a luz que provém do sol – da consciência.  Há uma participação crescente da consciência, gerando um “acalorado” conflito com os conteúdos produzidos pelo inconsciente, que provocará a síntese dos opostos no próximo estágio.

A mitologia da Lua é uma aula sobre a psicologia feminina, com sua natureza dupla e cíclica – a condição do encontro com o princípio feminino – a anima.

Na Albedo o movimento é circular, visitamos e revisitamos  temas velhos conhecidos, arranjando-os de uma nova maneira, sob um novo entendimento. Adiantamo-nos em nossa jornada, são passos dados à frente, saímos das sombras e atingimos a luz, da imobilidade para o movimento, do caos para a consciência. O estágio da Albedo simboliza crescimento, desenvolvimento e auto-conhecimento, mas traz consigo um aspecto de estado ideal e perfeito e, em vista disso, pede vida- sangue, para trazer a experiência para o nível humano novamente.

Álvaro de Campos, em seu poema “Afinal”,  parece descrever o modo do  trabalho a ser realizado na Albedo:

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio

De estar dentro do meu corpo,

de não transbordar da minh’alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,

Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,

Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,

Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,

Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,

Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,

Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

  • Rubedo (Iosis): elevação do fogo à sua maior intensidade, é o estágio final. O Branco/Rainha e o Vermelho/Rei podem celebrar suas “nuptiae Chymicae” – núpcias químicas —nesta fase.

Cor: Vermelho, o sangue.

Operações:  Coagulatio, coniunctio, multiplicatio,

Modo de execução da obra:  Para se realizar a Rubedo é preciso que o sangue dissolva os últimos resquícios da matéria negra, dê vida ao branco ganhando movimento. A ação é necessária: mergulhar, estar ativo em um movimento espiral, para alcançar a integração.

Paciente: É um estágio de muita vida e emoções  intensas. Significa compreender  e incorporar os fatos externos da vida e as vivências psíquicas internas e, desta forma, transformar-se em um ser completamente integrado, “eu” e Si-mesmo mantendo um diálogo constante e fluente.

A Rubedo, para os Alquimistas, é o momento em que se alcança a Pedra Filosofal, o Ouro Puro ou a Água Penetrante. É resultante da integração final dos opostos purificados: masculino e feminino, espírito e matéria, micro e macrocosmos, dessa forma recompondo-se a unidade.

No processo de individuação, passamos um longo período debatendo-nos, vivendo o conflito das oposições, as quais só conseguiremos integrar após experimentarmos e reconhecermos profundamente nossos conflitos. Este momento, em que nos submetemos à experiência de viver as oposições, é a coniunctio. É o momento de atuar em nossa vida e no mundo, de forma madura e equilibrada, com os conhecimentos adquiridos, ao longo da nossa jornada interior.

A Rubedo, quando se atingem as bodas reais, é um fato arquetípico, uma imagem presente no inconsciente coletivo e uma possibilidade a ser realizada. A coniunctio, masculino e feminino, o casamento arquetipico, pode ser  prontamente compreendida através da poesia “Os Acrobatas” de Vinicius de Moraes,

Subamos!

Subamos acima

Subamos além, subamos

Acima do além, subamos!

Com a posse física dos braços

Inelutavelmente galgaremos

O grande mar de estrelas

Através de milênios de luz.

Subamos!

Como dois atletas

O rosto petrificado

No pálido sorriso do esforço

Subamos acima

Com a posse física dos braços

E os músculos desmesurados

Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima

Mais longe que tudo

Além, mais longe que acima do além!

Como dois acrobatas

Subamos, lentíssimos

Lá onde o infinito

De tão infinito

Nem mais nome tem

Subamos!

Tensos

Pela corda luminosa

Que pende invisível

E cujos nós são astros

Queimando nas mãos

Subamos à tona

Do grande mar de estrelas

Onde dorme a noite

Subamos!

Tu e eu, herméticos

As nádegas duras

A carótida nodosa

Na fibra do pescoço

Os pés agudos em ponta.

Como no espasmo.

E quando

Lá, acima

Além, mais longe que acima do além

Adiante do véu de Betelgeuse

Depois do país de Altair

Sobre o cérebro de Deus

Num último impulso

Libertados do espírito

Despojados da carne

Nós nos possuiremos.

E morreremos

Morreremos alto, imensamente

Imensamente alto.

A título somente de informação, cito as operações alquímicas mais conhecidas, visto que não há um número exato delas:

 

 Calcinatio – calcinação, fixação

Solutio – solver, dissolver

Separatio – separação

 Coniunctio – união

 Putrefacio – putrefação

 Coagulatio – coagulação, solidificar

 

   Cibatio – nutrição

   Sublimatio – sublimação

   Fermentatio – fermentação

   Exaltatio – exaltação

   Augmentatio – Ampliação

   Proiectio – projeção

 

Seguindo o pensamento de Edinger (1985), focalizo as principais operações ao redor das quais se estrutura o processo de desenvolvimento psíquico, e que podem ser facilmente observadas nas imagens dos cenários do Sandplaycalcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio, coniunctio.

Qualquer operação pode inicializar o processo e isto é definido pelo momento que está sendo vivido pelo paciente.

As operações também estão relacionadas com os elementos:

Fogo  –  Calcinatio

                        Água  –  Solutio

                        Terra  –  Coagulatio

                            Ar   –   Sublimatio

Calcinatio

É o processo de aquecimento de um sólido para extrair água e outros elementos voláteis. O resultado obtido é a cinza branca que sobreviveu à prova de purificação. A cinza branca é equivalente ao sal, que simboliza Eros – a ligação, indicando a passagem para o próximo estágio alquímico: a Albedo.

Jung afirma que a libido – a energia psíquica – é simbolizada pelo fogo. Nessa operação é preciso suportar um afeto intenso para que ocorra a purificação e a consolidação. É o confronto com a sombra, que atende os desejos e instintos do lado primitivo contaminando o indivíduo pelo inconsciente. O fogo purgador origina-se das frustrações destes desejos, que trazem consigo sentimentos de tristeza, desespero, culpa e arrependimento, cuja expressão pode liberar o complexo da contaminação inconsciente. Neste ponto, é importante enfatizar que é fundamental a consciência do conteúdo psíquico, pois a “calcinatio só pode ocorrer por meio do aquecimento interior do corpo” (apud in Edinger, 2001, p.62).

O fogo é comumente relacionado ao Juízo Final, o purgatório.  O fogo do inferno é o lugar prometido aos culpados, depois da morte, como consequência dos aspectos sombrios da psique, voltados unicamente para o prazer e poder pessoal. Estes, quando identificados com o Si-mesmo geram a inflação, precisando, portanto, ser calcinados pelo elemento fogo, que destrói e extirpa tudo o que é impuro.

O fogo, principal método de sacrifício aos deuses nos tempos primitivos, liga o humano ao divino.

Há uma correspondência entre o fogo da calcinatio, Deus e Cristo, pois estes são arquétipos cuja energia ultrapassa o “eu” e leva à experiência do numinoso, de acordo com Edinger (apud, p.52).  Este fogo é análogo ao fogo da ira divina que Cristo suportou na cruz, no Monte das Oliveiras, sentindo-se abandonado pelo Pai: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Edinger, sob o ponto de vista místico, divide o fogo em dois tipos: terrestre e etéreo. Este último refere-se ao Nous, Logus ou Espírito Santo. Através da calcinatio, podemos perceber o aspecto arquetípico da existência, na medida em que estamos conectados com o aspecto transpessoal do nosso ser, experimentamos o afeto como fogo etéreo – o Espírito Santo – e não como o fogo terrestre – a dor do desejo frustrado.

Citando Jung, Edinger afirma que o resultado da calcinatio – a cinza branca – simboliza “a coroa da vitória, cinza extraída da cinza. (…) é o corpo incorruptível glorificado que sobreviveu à provação purificadora”. (apud, p.59).

Na perspectiva do processo terapêutico, Edinger alerta que a precipitação do terapeuta pode causar uma corrosão, em vez de calcinação.  Caso não exista um vínculo suficientemente forte para criar a frustração sem destrutividade, o resultado será desgaste, decomposição e destruição.

Segundo Dora Kalff (2003), a transformação que acontece no fogo intenso – caucinatio – ganha mais um atributo, a vitalidade renovada com uma energia intensificada, que geralmente é acompanhada por emoções fortes.

Podemos observar esta operação nas imagens do Sandplay que contenham fogo queimando: velas acesas, fogueiras, incêndio, queimadas, lareira acesa, fogão a lenha aceso, fósforos acesos, etc.

Imagens que demonstrem a negação do poder do fogo, indicando que o paciente não é sensível a ele, podem sinalizar que no momento não há possibilidade de identificação com o afeto e com reações emocionais suas ou de outras pessoas. A situação oposta pode sugerir um “eu” fragilizado e, consequentemente, muito vulnerável a afetos intensos, ou seja, ao fogo, nas imagens inclusive.

 Solutio

A matéria sólida dissolve-se no solvente, transformando sólido em líquido. Há um retorno ao estágio original indiferenciado – a água, a prima matéria. A água é o material primordial que deu origem ao mundo, portanto é equivalente ao útero.

Edinger (1985) sintetiza a Solutio em sete principais aspectos simbólicos:

  1. Retorno ao útero;
  2. Dissolução, dispersão e desmembramento;
  3. Conteúdo e continente;
  4. Renascimento, imersão no fluxo de energia criadora;
  5. Prova de purificação;
  6. Solução de problemas;
  7. Processo de derretimento ou suavização.

Esta operação simboliza o retorno ao útero materno para um renascimento, pois por meio desta regressão os aspectos rígidos e cristalizados serão dissolvidos. Vivencia-se o conceito de “conteúdo e continente”, o relacionamento entre o simples e o complexo, que abrange os opostos, fazendo com que o simples se torne um mero receptor de impressões e influências, dissolvendo-se e entrando em solutio.

O agente da solutio é o Si-mesmo, é o confronto do “eu” com o inconsciente.

A solutio, observada sob o aspecto da vida interior, pode ser percebida pelo “eu” dissolvido no Si-mesmo, ou pode ser vivenciada na vida exterior, dentro de um grupo de uma instituição profissional, política ou religiosa, por exemplo, o que pode suscitar a projeção do Si-mesmo e diluir o indivíduo; ou ainda, na relação transferencial, o “eu” do paciente pode  se dissolver diante de um terapeuta que tenha uma atitude muito abrangente, como nos alerta Edinger (2006).

A solutio pode ser observada também sob o aspecto dionisíaco, que traz o excesso e a busca do prazer desmedido, arrebatando as pessoas através da bebida, música, sexo e da loucura, dissolvendo os limites e o equilíbrio.  Caso o indivíduo seja imaturo psiquicamente, pode ser destruído por essa energia, pois o traço compulsivo de Dionísio pode se tornar presente em uma personalidade dissociada, gerando um desmembramento psicológico, ou seja, uma psicose.

O risco desta operação para o “eu” imaturo constitui-se em sua acomodação ao prazer deste momento regressivo. Um indivíduo que já experimentou a autonomia do “eu” provavelmente reagirá com uma ansiedade elevada, diante da simples possibilidade de solutio. Isto ocorre por ele ter vivenciado, em sua trajetória, o risco de dissolução da autonomia do “eu”, que exigiu muito esforço para ser alcançada.  Por esta razão, esta operação pode ser acompanhada da sensação de aniquilamento, muito embora sempre desponte uma nova forma revigorada.

Esta operação pode ter dois efeitos: o desaparecimento de uma forma, ou seja, a matéria dissolvida  experimentará o aniquilamento levando a morte, muito embora a forma resultante representa algo novo e rejuvenescido.  A vivência da solutio dissolve as cristalizações  do “eu” transferindo o foco para a instância do sentimento.

O aspecto purificador desta operação pode ser observado em situações que tenham a conotação de limpar as impurezas, lavar a sujeira física ou psicológica – os aspectos sombrios.

Podemos observar esta operação nas imagens do Sandplay que contenham: banhos, imersão na água, batismo, natação, chuvisco, orvalho, aguaceiro, inundação, afogamento, mergulho, dilúvio, as sereias levando os homens para o fundo do mar, lavagens e etc.

Coagulatio

            É um processo que, por meio de resfriamento, converte liquido em sólido, transforma a prima matéria em terra, dá forma e posições fixas, compara-se à criação.

A coagulatio é acionada quando um determinado conteúdo psíquico ganha forma por meio de uma situação vivencial, gerando conflitos e tensões, mas trazendo consigo o desenvolvimento do “eu” e a conseqüente solidificação.

A coagulatio apresenta-se na fase inicial do processo de desenvolvimento da personalidade, pois harmoniza-se perfeitamente com os arquétipos, que necessitam ser preenchidos  com as experiências conscientes que irão coagular a  imagem pré-formada.

Na situação terapêutica, esta operação pode manifestar-se em situações em que o paciente passa a assumir suas fantasias e idéias inconstantes, conscientizando-se das limitações pessoais e reais da vida.  A coagulatio traz a sensação de submissão porque nos vincula à realidade verdadeira.

A coagulação pode igualmente ocorrer através do desejo e da vontade, pois estas são forças impulsionadoras da consciência, que promovem a experiência de vida e, por conseqüência, o desenvolvimento do “eu”.

As imagens do Sandplay coagulam o material do inconsciente e, por meio delas, é possível, a partir deste momento, ter uma relação objetiva, que acalma e recupera a paz interior. Nesta operação o agente purificador é a consciência, logo ela representa a possibilidade de uma nova atitude em relação à matéria.

Podemos observar esta operação nas imagens do Sandplay que contenham: formas criadas com areia úmida,  hóstia, mel, cera, balas, doces, igrejas e templos, a cruz, uma mulher grávida, a casa como lar, roupas, pombas, toda representação concreta de um desejo, vontade ou valor.

            Sublimatio

            É o processo de transformação da matéria em ar, por meio da volatilização: o que é inferior torna-se superior, ela sai da terra e se dirige ao céu.

Nesta fase, o paciente é capaz de avaliar e analisar objetivamente o problema sem se envolver emocionalmente, como se olhasse a questão de cima, considerando isoladamente um ou mais elementos de um todo. Este distanciamento possibilita ao observador da situação uma perspectiva maior, mas também o coloca como espectador, com menor condição de agir sobre o que ele percebe.

Edinger (1985) diz que o movimento ascendente eterniza e o descendente personaliza – sublima o corpo e coagula o espírito –   sendo ambos os sentidos igualmente necessários.

O movimento ascendente determina a Sublimatio superior, simbolizando o resultado psíquico da nossa jornada de individuação e a transição para um nível superior da consciência transformada.  Dessa forma, assume o significado de purificação, separando o que pertence ao espírito e o que pertence à matéria, erradicando a contaminação do inconsciente. Dentro de um processo de crescimento e evolução, o indivíduo aprende a ver a si mesmo superando as paixões pessoais e o mundo de forma universal,  voltando suas idéias para o coletivo. É o processo de elevação das experiências concretas e pessoais em nível superior, transpessoal ou universal.

O movimento descendente, a Sublimatio Inferior, atém-se à matéria genérica do trabalho terapêutico — as questões pessoais imediatas e as particularidades da vida concreta do indivíduo. Ele suscita imagens, no Sandplay ou em sonhos, relativas a movimentos de elevação, diversos tipos de vôo: em balão, avião, asa delta, etc. Este pode um indício de inflação do “eu” e necessidade de descer, de tomar pé novamente na realidade e se enraizar.

Esta combinação dos movimentos de subida e descida gera o movimento circular, o movimento do processo psicoterapêutico.  Por meio de ciclos repetidos os conflitos vão sendo elaborados, promovendo a consciência e a integração das oposições, e assim o desenvolvimento vai acontecendo. Hermes dá o sentido da circulatio na Tábua de Esmeralda: “ela ascende da terra para o céu e desce outra vez para a terra, e recebe o poder do que está em cima e do que está em baixo. E, assim, terás a glória de todo o mundo. Desse modo, toda a treva fugirá de ti.”

No plano psicológico a circulatio é fundamental, porque promove o trânsito entre todos os aspectos do ser, incluindo suas polaridades opostas, levando ao equilíbrio de forças conflitantes.

Podemos observar esta operação nas imagens do Sandplay que contenham: elevadores, escadas, montanhas, degraus, vôos, pássaros, asas, penas, aviões, levitação, alpinismo, torres.

 Mortificatio e Putrefactio

Putrefactio é o processo de decomposição, o apodrecimento da matéria; mortificatio representa rigorosamente a morte. São denominações para dois aspectos intercambiáveis da mesma operação, são projeções de uma imagem interna, em que a matéria é personificada e torturada até a morte.

Apesar de esta operação estar ligada à derrota, tortura, mutilação, apodrecimento e morte, essas imagens enegrecidas, símbolo do confronto com os aspectos sombrios, é que possibilitam a passagem para o crescimento e o renascimento.

A Putrefatio tem relação com o fogo interno que leva à decadência, a uma fantasia de desintegração.  Acontece uma desconstrução, acompanhada da sensação de confusão, pois as fixações e compulsões tão arraigadas começam a não se manifestar da mesma forma. Porém, este é o inicio de uma transformação de uma vida autômata e sem imaginação.

A Mortificatio inicial simboliza o período perigoso e contaminado, pela anima ou animus, em que os afetos e exigências desmedidas precisam morrer para que a energia psíquica descontamine-se do primitivismo e transforme-se.

Em outro momento, a mortificatio volta-se para o instinto de poder do “eu”— é a morte pelo excesso e egocentrismo, ou a pureza e a inocência — para ressurgir modificado e mais centrado. É o sacrifício, na medida em que o “eu” abraça a morte,  constela a vida profundamente, segundo Edinger.

A transformação é uma fase dolorosa, mas de entrega. Sabe-se que depois dessa etapa há uma fertilização do terreno para que o novo possa surgir.

Jung afirma que o encontro com o inconsciente é sempre vivido como uma sofrida derrota, pois a integração dos conteúdos sombrios (que antes eram projetados) significa uma certa humilhação do  “eu”, que após uma série de derrotas submete-se ao Si-mesmo.

Podemos observar a Mortificatio nas imagens do Sandplay que apresentem os seguintes símbolos: enterros, morte, cadáveres, urubus, corvos, esqueletos, cemitérios, sepulturas, cor negra predominante, a Via Crucis, dragões, sapos e etc.

A Putrefatio manifesta-se nas imagens do Sandplay que contenham: fezes, excrementos, personificações de mau cheiro, vasos sanitários sujos, vermes, carniça, animais ou humanos em decomposição.

Separatio

Relembrando, a prima matéria compõe-se de uma massa confusa e indiferenciada, portanto requerendo um processo de separação e discriminação de suas partes. Assim, os alquimistas separavam o denso do sutil, o fixo do volátil, a matéria do espírito, simbolicamente marcando o início da consciência da existência dos pares de elementos opostos. Enquanto não havia consciência, vivia-se no estado de participação mística (participation mystique), no qual o indivíduo não consegue se separar do objeto, com o qual vive em simbiose, estabelecendo-se a dinâmica da identificação projetiva. Logo, institui-se a identificação com um lado e a consequente projeção com o outro, que passa a ser visto como o inimigo.

A Separatio resulta na divisão em dois, pois a princípio o indivíduo oscila entre os opostos, não conseguindo fazer uma escolha. Caso permaneça nesse estado de divisão, uma neurose poderá eclodir; porém, se ele adquirir a consciência dos opostos — sujeito-objeto, ou “eu”-“não-eu” — cria-se um espaço intermediário, e desta forma o indivíduo passa a ter condições de recolher suas projeções à medida que vai adquirindo consciência e acolhendo os opostos dentro de si.  O resultado da separatio também é associado à “tetrameria filosófica”- o quatro.

O agente da separatio é o Logus – o espírito, que traz a discriminação, o discernimento e o julgamento, a habilidade de se dividir, nomear, categorizar, dissecar, diferenciar. Medir, contar, pesar, também são características da separatio, pois tornam as diferenças claras e visíveis.

A separação do espírito da matéria — corpo e alma —remete-nos à experiência de morte, no nível concreto ou psicológico. No primeiro caso, quando algum ente querido vem a falecer e conscientemente conseguimos nos desidentificar com essa perda; no segundo, quando experimentamos a mesma desidentificação em relação a uma parte de nós mesmos, o “eu”. Em ambos os casos seremos conduzidos a um aumento de consciência e percepção do Si-mesmo, fato impulsionador do processo de individuação.

Podemos observar a Separatio nas imagens do Sandplay que apresentem os seguintes símbolos: facas, lâminas, foices, espadas, fios de navalha, compassos, réguas, sextantes, esquadros, escalas, fios de prumo, balanças, a morte (como a separação de um ente querido), órfãos (separação dos pais pela morte), viúvas (separação do marido), divórcio, o juízo final (julgamento após a morte). 

Coniunctio

A coniunctio é o ápice da obra alquímica. Sob o aspecto extrovertido, levou a estudos químicos que chegaram à física quântica e, como aspecto introvertido, levou ao estudo das imagens alquímicas que chegaram aos processos do inconsciente e à psicologia profunda.

Este processo surge da combinação de dois elementos opostos para formar um terceiro.

A coniunctio tem três etapas:

  1. Unio mentalis – É a fase em que se objetiva alcançar o conhecimento da própria luz e sombra. É a nossa realidade cotidiana.
  2. Unio mentalis + corpo – O conhecimento do paradoxo de que o homem é mais do que se imagina, agora é realidade. O indivíduo está em um estágio avançado de seu processo de individuação. Segundo Jung: “a grande dificuldade, aqui, é que ninguém sabe como a totalidade paradoxal do homem poderá um dia se realizar” (JUNG,XIV, §680).
  3. Unus mundus – É a ultima etapa da coniunctio, muito longe da nossa realidade atual. É experimentada somente por breves momentos. Simbolizada pela mandala, é a realização da Pedra Filosofal.

A união imperfeita dos contrários — coniunctio inferior —cria a necessidade de novas operações alquímicas, pois o resultado obtido não é satisfatório, porquanto as substâncias não se separaram totalmente, estão mutiladas, fragmentadas ou mortas. Podemos observar este tipo de coniunctio quando o “eu” identifica-se com conteúdos inconscientes: sombra, anima-animus, ou o Si-mesmo. Esta situação irá exigir a morte e a separação.

A união perfeita denomina-se coniunctio superior, pois seu resultado é a união dos contrários já purificados, diminuindo e corrigindo as diferenças, resgatando a unidade, que pode ser denominada como Pedra Filosofal, Nosso Ouro, Água Penetrante, Tintura, etc.

A imagem simbólica do intercurso sexual entre o Sol e a Lua, ou outras representações dos contrários, representam a coniunctio, inferior ou superior.

A coniunctio contém em si um paradoxo: para atingir a união é preciso morrer, para só assim “curar a separação. O Si-mesmo une e harmoniza os contrários, no entanto o operador, o “eu”, trabalha a favor  desta união,  enfrentando o sacrifício necessário, e colocando-se a serviço do Si-mesmo. Esta conexão representa a tomada de consciência do processo de individuação e a aquisição do conhecimento justo das coisas, humanas e espirituais.

O Eros, a conexão ou o amor,  é fundamental, como causa ou efeito, para que a coniunctio de realize. A coniunctio inferior origina-se da união de substâncias  impuras e sem discriminação, como por exemplo o desejo sexual intenso.

O amor transpessoal cria a coniunctio superior, ou é por ela criado.  Este amor é purificado do desejo pessoal, não é um dos lados do par, está além disto. O amor transpessoal é o fundamento da família, nação, humanidade, etc.  É o aspecto extrovertido da coniunctio que fomenta o interesse social, enquanto o aspecto introvertido refere-se à conexão com o Si-mesmo.

coniunctio superior gera a Pedra Filosofal, cujo atributo consiste na mediação entre os elementos, diminuindo as diferenças, aproximando-os e tornando-os mais semelhantes. O processo de preparação da Pedra envolve a submissão da matéria a diversas transformações no seu oposto – o úmido precisa ficar seco e o fugidio precisa se tornar fixo. Portanto, as operações são propriedades pertinentes à Pedra Filosofal, que as projeta sobre a matéria e assim a transforma e multiplica, tal qual “um remédio que ao ser aplicado a algo imperfeito, torna-o perfeito por inteiro na própria projeção” (apud in Edinger,1985).           Edinger exemplifica o poder de multiplicação da Pedra Filosofal com as passagens do milagre da multiplicação dos pães e peixes, citada na Bíblia, em Mateus,14:17-21,e  a multiplicação de flores durante a coniuncio  de Zeus e Hera.

Do mesmo modo ocorre o processo psicoterapêutico: o indivíduo vive a experiência dos opostos, que faz surgir ora uma posição ora outra, num suceder repetido e alternado, até conseguir integrá-las. Neste momento, ele alcança a sua Pedra Filosofal, o Si-mesmo.  A interação do “eu” com o  Si-mesmo  é vivida como uma experiência numinosa, que reverbera como uma influência transformadora; seu efeito é multiplicador, pois segue  produzindo uma  alteração da consciência do  próprio indivíduo e inspirando as pessoas à sua volta.

Podemos observar  a Coniunctio inferior  nas imagens do Sandplay  que apresentem os seguintes símbolos: união de animais, casamento de pessoas comuns, relações sexuais, estupro, conexões, correntes, cordões, fios conectores,  associações, servidão, prisão, vínculos com a igreja, com a família ou com uma corporação. Imagens que representem lealdade e fidelidade a algo, identidade coletiva.

A coniunctio superior é observada no Sandplay por meio dos símbolos: casamento do Rei e da Rainha, do Céu e da Terra, do Sol e da Lua.

Conclusão

Jung provou que o simbolismo alquímico é em grande parte um produto da psique inconsciente, que este rico enredo de imagens é a “água da psique”, e por meio delas podemos compreender seus conteúdos.

Assim, a alquimia é uma ferramenta valiosa para a interpretação das imagens do Sandplay, pois ambas revelam “uma espécie de anatomia da individuação”, como diz Edinger (2001,p.22). Por meio de suas imagens, tornam-se evidentes as experiências de transformação vividas durante o processo psicoterapêutico.

A simbologia das imagens alquímicas contribui para uma melhor compreensão das imagens do Sandplay, pois elas concretizam as experiências de transformação por que passamos durante o processo psicoterapêutico,  e facilitam a percepção do desenvolvimento  do paciente, assim como nos advertem sobre o que esperar como desdobramentos. Dessa forma, estaremos mais bem instrumentalizados para acompanharmos nossos pacientes na travessia de cada etapa.

Este trabalho versado para o inglês, conferiu o título de Terapeuta de Sandplay, em 22/09/2009, pela ISST-International Society for Sandplay Therapy (Suiça),  sob a supervisão de Zilda Maria de Paula Machado e Ruth Ammann como advisor.

Em 2011, este trabalho foi adaptado e publicado no Journal of Sandplay Therapy da STA- Sandplay Therapists of America, vol. 20, n.2, 2011.

Como citar: LEVY,E.G., Os símbolos dos Processos Alquímicos e o Sandplay. Disponível em HTTP://www.jogodeareia.com.br/artigos. Acesso em (colocar data e hora)